Páscoa: ritos de sangue e tradição

A Páscoa, como a maioria conhece, e por causa da globalização, caracteriza-se pelo tão estimado “ovo de chocolate”, e tem o coelho como um símbolo da divulgação da festa.

Contudo, a Páscoa é um importante momento da história da civilização judaica no mundo; e ela vai muito além disso, ela traz os imaginários milenares dos festivais da primavera com a cultura dos povos pré-cristãos na Europa; pois a primavera traz a renovação da vida identificada nos símbolos da fertilidade, entre tantos outros fatos que acontecem na natureza nesta época.

E é a partir da chegada do equinócio da primavera no Hemisfério Norte que se marca o primeiro domingo, após a primeira lua cheia, como o dia escolhido para a celebração da Páscoa.

A escolha da data da Páscoa está agregada às antigas tradições dos povos pré-judaicos e cristãos como uma interpretação dos elementos da natureza e da magia.

Essas antigas culturas recuperaram as memórias de diferentes civilizações que ritualizam a primavera enquanto um ciclo da natureza aonde há um forte sentido de renovação da vida. Essas celebrações cíclicas aconteciam nas mudanças das estações, e também mantinham os seus diferentes costumes sacrificiais.

No caso da primavera, há o oferecimento dos primeiros frutos das colheitas; das primeiras garrafas de vinho; do fabrico de pães que chegam das primeiras espigas douradas de trigo; entre tantas maneiras de estabelecer comunicação com o sagrado.

Há uma variedade de deuses, de mitos, e de tantos outros personagens que se integram ao imaginário da vida, da comida, da festa, da comensalidade, da procriação relacionados à natureza. E é a ideia de continuidade do mundo que se une a Páscoa nas tradições judaico-cristãs, numa busca de interação do homem com o Divino.

A base e a memória fundante das nossas tradições da Páscoa recorrem às bases judaicas. E nasce a partir do episódio da fuga do Egito, com a libertação do povo de Israel.

Essa fuga marca o momento culminante dos muitos episódios das ações de Deus para libertar seu povo. Porém, fez-se necessária uma preparação para a fuga, e os judeus deveriam marcar as entradas das suas casas com o sangue dos cordeiros que seriam sacrificados em louvor à Deus, para poderem salvar os seus primogênitos. Dessa forma, os judeus não seriam vítimas do castigo divino, como ocorreu para o restante da população.

Foto Jorge Sabino

Assim, o sentido simbólico e histórico da Páscoa se dá com o Êxodo dos judeus do Egito, fuga e a travessia do povo de Israel pelo Mar Vermelho. Páscoa é uma palavra hebraica derivada de – pesah – travessia, passagem; o que reafirma a importância do contexto da fuga dos escolhidos por Deus, os judeus.

E na antiguidade, para lembrar e celebrar a memória da libertação do povo de Israel, cada família judia sacrificava, anualmente, um cordeiro para agradecer e fortalecer a sua aliança com o divino.

No calendário judaico, a Páscoa é uma das festas que tem o maior significado para a unidade e a memória do povo de Israel. Os sacrifícios dos cordeiros se transformaram em refeições rituais que lembram, de diferentes formas, a história do Êxodo e da libertação dos judeus do Egito.

Nessa refeição ritual é relembrada, até hoje, a pressa da fuga do Egito, por isso o pão que é servido é o matzá – pão sem fermento –; também, não poderá ser servida nenhuma outra bebida ou comida fermentada na mesa da Páscoa.

Contudo, o sentido da celebração da Pascoa, para o mundo, se amplia com a formação do cristianismo. Coincidentemente, no período da Pascoa judaica ocorreu a crucificação de Jesus, um ato de sacrifício. Este sacrifício, remete-se mimeticamente ao sacrifício do cordeiro.

“No dia seguinte, viu João a Jesus, que disse: Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. (João, 1:29)

No imaginário coletivo dos povos judaico-cristão a Páscoa traz os sentimentos de liberdade, de vida, e de ressureição.

E, assim, todos esses temas fazem parte das celebrações da Páscoa. Tudo se une ao ideal de renovação e de renascimento presente em cada cultura e em cada tradição religiosa.

Raul Lody
Recife, 06 de abril de 2017

Folhas de comer

O que comer, como comer, como escolher o que comer, são perguntas clássicas que fazem existir tantos, diferentes e complexos sistemas alimentares.  E diante de tantas buscas , com certeza há um forte elemento condutor para os ingredientes que está na natureza, na biodiversidade. Porque cada ingrediente traz interpretações simbolizadas pela cultura. E assim nas experiências das escolhas, do fazer e do comer são determinados os melhores aproveitamentos para cada ingrediente.

Com a tradição do homem coletor da natureza, com as folhas, as raízes, os rizomas, os frutos, as flores possibilita  uma interação entre ingredientes e a boca do homem. Depois com a caça, com o início da agricultura vive-se uma busca por maiores opções para ampliar os preparos culinários e assim experimentar os seus  múltiplos significados .

foto Jorge Sabino

Sempre a comida valorizada nos melhores aproveitamentos de cada ingrediente . Assim as cozinhas fundadoras mostram a necessidade de uma total utilização da folha, da fruta, da raiz ,da caça, do peixe,  entre tantas opções para saciar a fome, para buscar  representações de identidade que estão marcadas em  cada receita e  em cada ritual de alimentação.

Hoje no mundo globalizado ao mesmo tempo que impõe comidas massificadas e super processadas vigora em muitos movimentos, também planetários, a busca pela manutenção e experiência culinária nos inúmeros e diversos sistemas alimentares das civilizações, das etnias ,dos povos do mundo. Assim são valorizados cada vez mais os encontro com as ´técnicas artesanais, com os ingredientes que chegam da agricultura familiar, de acervos da biodiversidade.

Nestes cenários sociais pela diversidade de alimentos, pela biodiversidade, pela pluralidade cultural, pelo direito a soberania  alimentar,  olha-se para o que a natureza oferece como ingrediente “in natura” e assim é crescente o interesse  pelas PANC’S.

Com essa verdadeira “new wave” sobre as PANCS, plantas alimentícias não convencionais vê-se como  é muito significativo as muitas possibilidades dos ingredientes “verdes” no estabelecimento de uma compreensão ampliada sobre comida e cultura.

Tudo isso une-se a sabedoria tradicional de cozinheiros, de “ervateiros” ou ”mateiros” também verdadeiros patrimônios vivos que preservam as relações com as inúmeras plantas comestíveis. Ainda acervos significativos de plantas que estarão na medicina e nos rituais religiosos  mostram uma imensa variedade de plantas e como são interpretadas nas cozinhas, ou nas preparações de banhos, infusões, entre tantas maneiras de trazer e de interpretar a natureza no convívio com o homem

Nas muitas ”cozinhas” que  fazem o acervo patrimonial alimentar da Bahia há a tradição de se comer muitos tipos de folhas em alguns pratos já sacralizados da mesa baiana enquanto verdadeiros processo culinários que possibilitam interpretações e amplo consumo no cotidiano e nas festas

Exemplo do caruru e do efó, preparos com folhas , dendê e complementos . Por que caruru não é um prato exclusivo de quiabos, o caruru pode também ser preparado com variadas folhas, dai o costume de se perguntar o caruru  é de quiabo; é efó de que? De taioba, de língua-de-vaca, de bredo, ou major-gomes, maria-gorda, beldroega grande . E ainda o efó pode ser de bertalha, basela, cipó-bobão, folha santa, trepadeira mimosa. É tradicional se fazer efó também de folha de mostarda, e sempre o melhor camarão defumado, o azeite da ‘flor do dendê para esse guisado de folhas tão afro-baiano. E ainda nas interpretações como “amorí e latipá”

Caruru é palavra nativa, do Tupi, significa “erva de comer” e está presente no nosso português vernacular.

Tantos nomes e variedade nesse universo tão cotidiano das comidas que são popularmente consideradas de “mato”, ”mato de comer” conforme as tradições, e ainda como maneiras estratégicas para não se passar fome, e dessa maneira aproveitar as muitas ofertas nativas que fazem essa imensidão de folhas  próprias para a alimentação. Folhas que trazem sabores e receitas do cotidiano e algumas das festas, em destaque a maniçoba feita a base das folhas da mandioca.

Certamente a morfologia do tão celebrado e delicioso caruru de quiabos, traz o imaginário das muitas maneiras de se fazer os guisados de folhas. E assim semelhante, com ingredientes também semelhantes, pode-se interpretar essa onda verde tão popular. Porém tudo é nutritivo, alimenta  o corpo e em especial o nossa emoção quando experimentamos essas comidas.

 

Raul  Lody.

Gilberto Freyre, açúcar e território

Comemoração dos 70 anos da publicação do livro Nordeste

A compreensão de Gilberto Freyre sobre o Nordeste se dá através de um profundo laço existencial, que inclui família, pesquisas de campo, teorias científicas; e principalmente o seu grande carinho pela região.

O livro Nordeste (1937) mostra a valorização ecológica, e especialmente humanista, da ocupação dos territórios, das matrizes culturais, e das maneiras de viver e se relacionar com a natureza.

Assim, pode-se situar Gilberto Freyre como um observador que busca ver o todo, ou quase. Seu interesse vai do geral para o particular, e passa pela estética regional, pelo açúcar, pela natureza não isolada do homem, pela história das sociedades do Nordeste; pela água, pelo bicho, pelo clima, pela comida, pela festa, pela tradição, pela religiosidade.

foto Jorge Sabino

Gilberto Freyre tem uma concepção muito partícula sobre o Nordeste, a sua região. Assim, realiza trabalhos fundamentais, como o livro [dos mais queridos por mim] chamado Nordeste, publicado em 1937, e que traz pela primeira vez na língua portuguesa a palavra Ecologia.

“Este ensaio é uma tentativa de estudo ecológico do Nordeste do Brasil”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xi)

Gilberto destaca diferentes ecossistemas do Nordeste, onde ele destaca a ocupação por modelos ibéricos, africanos e autóctones. Os cenários naturais têm vocações e diferentes tipos de vegetação, de terra, de água, e de ciclos climáticos.

“O critério deste estudo já disse é um critério ecológico. O centro de interesse, do homem, fundador da lavoura e transplantador e criador de valores à sombra da agricultura, ou antes da monocultura da cana. O homem colonizador, em suas relações com a terra, com o nativo, com as águas, com as plantas, com os animais da região ou importador da Europa ou da África”. (Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967:xi)

A pesquisa de campo, o estar em campo, enquanto uma maneira de fazer sociologia e antropologia e, no caso, fazer ecologia, mostra a orientação que Gilberto Freyre teve de Franz Boas, que transgrede com a antropologia física, própria do início do século XX, e valoriza as vertentes culturais para o entendimento do homem e de sua sociedade.

“Impossível afastar a monocultura de qualquer esforço de interpretação social e até psicológica que se empreenda do Nordeste agrário. A monocultura, a escravidão, o latifúndio – mas principalmente a monocultura – aqui é que abrigam na vida, na paisagem e no caráter da gente as feridas mais fundas. O perfil da região é o perfil de uma paisagem enobrecida pela capela, pelo cruzeiro, pela casa-grande, pelo cavalo de raça, pelo barco a vela, pela palmeira-imperial, mas deformada, ao mesmo tempo, pela monocultura latifundiária e escravocrática; esterilizada por ela em algumas de suas fontes de vida e de alimentação mais valiosas e mais puras; devastada nas suas matas; degradada nas suas águas”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xii)

Ainda, Gilberto enfatiza o convívio com o mar, com os rios, com a terra de massapé, com o sol.  Sol emblematicamente tropical.

“A natureza regional tende, não há dúvida, a fazer o homem, o grupo, a cultura humana à sua imagem; mas, por sua vez, o homem, o grupo, a cultura humana agem sobre a natureza regional, alterando-a de modo às vezes profundo. Há uma contemporização entre as duas tendências. De modo que o conceito de Ratzel de que ‘cada povo traz em si as feições da região que habita’ pode ser completado dizendo-se que não há região habitada que não tenha sobre o solo, a vegetação, a vida animal, a marca especial do povo que a habite: não só da sua técnica de produção – como se apressaria em salientar um marxista ortodoxo – como do conjunto de usa cultura e de sua personalidade ou ethos”
(Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967: xxii)

E continua Gilberto:

“No Nordeste da cana-de-açúcar, a água foi e é quase tudo. Sem ela não teria prosperado do século XVI ao XIX uma lavoura tão dependente dos rios, dos riachos e das chuvas; tão amiga das terras gordas e úmidas e ao mesmo tempo do sol; tão à vontade dentro de uma temperatura média que em Pernambuco é de 26º, 5 e de chuvas; tão feliz numa atmosfera cheia de vapor de água”. (Freyre, Gilberto. Nordeste. 1967:19)

Para Gilberto a paisagem é uma síntese do meio ambiente, das ocupações e das maneiras de interpretar a natureza. As chegadas dos colonizadores com vontade extrativista, e as ocupações com o mando europeu, relativizando, permanecem até hoje na busca de conquistar e invadir a natureza.

“(…) como disse Frei Vicente de Salvador, da maioria dos colonos do seu tempo. Nem dos que a célebre crônica dos princípios do século XVIII – os Diálogos das Grandezas – retratou em traços tão vivos; os que aqui apenas se contentavam em fazer seus pães de açúcar, não se dispondo a plantar árvores frutíferas nem fazer benfeitorias nas plantas nem a criar gado; nada que custasse muito esforço ou levasse tempo. Só a monocultura de lucros imediatos, que entretanto não deixava de exigir condições de estabilidade e de permanência, dispensadas pelo simples comércio de pau-de-tinta e de peles”.
(Freyre, Gilberto. Nordeste.1967:101)

As peculiaridades da região Nordeste, e as destinações naturais do Litoral, da Zona da Mata, do Agreste e do Sertão oferecem distintas ocupações aonde há um diálogo permanente entre o sol e a água. Numa visão ancestral e mitológica, o masculino e o feminino são relacionados com resultados idealizados de fertilidade, e da forma de vida do homem, da terra, das plantas, e dos animais

Nordeste, início da civilização luso-tropical do Brasil. Um tipo de padrão, de marca, de ocupação da natureza pelo homem.

Assim, o entendimento avançado de Gilberto Freyre sobre o Nordeste e, em especial, sobre o Litoral e a Mata Atlântica, no território consagrado como Zona da Mata, aponta para uma verdadeira civilização do açúcar da cana sacarina, a civilização do doce e dos processos interculturais aonde se revela o pertencimento a uma região.

 

Raul Lody

Carne para comer

O sacrifício dos animais.

Sem dúvida, as religiões são sacrificiais, e os seus sacrifícios vão muito além do oferecimento, em imolação, de animais de diferentes tipos, de acordo com as liturgias.

Entretanto, uma flor, uma vela, uma bebida, um cereal; o pagamento de um carnê, numa nova versão do óbulo, podem significar um ato sacrificial conforme as regras, os conceitos e as orientações das muitas tradições religiosas que estabelecem as complexas relações entre o homem e a divindade.

O sacrifício pode ser um ato individual ou coletivo, e a doação que se quer oferecer em sacrifício segue uma ética sagrada. Uma forma ritual de se estabelecer comunicação, aliança, compromisso, que são legitimados por cada tipo de oferta e de cerimônia.

Quero nesse conjunto tão diverso, daquilo que se pode entender por ato sacrificial, destacar a forma de matança de variados animais com diferentes intenções, funções e sentidos para se alcançar o sagrado. Porque os animais sacrificados seguem para os altares e para as mesas no cumprimento de sistemas alimentares onde as carnes são oferecidas em culto e fé religiosa. Animais que fazem uma aliança entre o sagrado e o homem.

foto de Jorge Sabino

foto de Jorge Sabino

No mundo globalizado os animais consumidos com intenções sagradas, sacrificiais, atingem a cifra de bilhões.  E o ato sacrificial vai muito além de uma pessoa que usa um facão para degolar uma galinha, por exemplo, as próprias industrias, conforme os interesses econômicos, assumem posturas morais/religiosas para atingir novos mercados.

Há um mercado consumidor que exige grandes abates, e milhares de animais são sacrificados para o cumprimento de prescrições religiosas, de modo que nas tradições que são contempladas pelas regras do sacrifício os seus adeptos possam, sem incorrer em pecado, preparar as suas comidas com estas carnes já abençoadas.

Nessa mesma categoria estão os milhões de perus que são sacrificados todos os anos para fazer parte do banquete do Dia de Ação de Graças e, em especial, nos USA.  Estes perus são mortos, diria sacrificados, para atender uma intenção, um uso religioso no oferecimento de carne, e a sua partilha à mesa em celebrações orientadas por um protestantismo histórico.

São verdadeiras matanças dessas aves que são oferecidas a Deus, e as receitas clássicas dessas carnes são socializadas durante as refeições coletivas. O mesmo se dá na ceia natalina no mundo Cristão com os muitos tipos de assados: porco, cabrito, ovelha, entre outros animais que também são sacrificados em ampla matança, na intenção de celebrar o nascimento do Menino Deus.

Assim, milhões de animais são mortos, intencionalmente mortos, para preservar a celebração e a fé. Porque o que vai à boca, a comida, é na maioria dos casos orientadas por tradições religiosas enquanto verdadeiras receitas que devem ser legitimadas numa base moral e sagrada.

Alguns animais são necessários para o sacrifício, e em cada abate há uma intenção religiosa, seja para celebrar dogmas de igrejas, de sinagogas, de mesquitas, de terreiros de candomblé, entre outras tradições religiosas. E o princípio que orienta o sacrifício é a alimentação humana.

Por exemplo, para manter a carne dentro da qualidade kosher para os judeus, e a qualidade halal para os islâmicos ou muçulmanos, o abate deve ocorrer com uma única ação, um único golpe da faca sobre a jugular do animal, onde se despeja todo o sangue, pois o sangue não é próprio para o consumo humano.

O abate de base ritual para os islâmicos ou muçulmanos se dá com aves, bovinos, caprinos, ovinos, e que ainda quando vivos devem estar voltados para a direção de Meca, e então o abate será feito por um muçulmano praticante.  A faca com que se faz a degola do animal deve estar muito afiada para garantir a morte instantânea do animal, sem sofrimento; e assim antes do sacrifício, pede-se uma autorização a Deus, em árabe, como uma maneira de mostrar obediência e agradecimento pela comida, e, desse modo, atestar que o sacrifício não é um ato de crueldade ou de sadismo.

Integrado aos conceitos de alimentação, de comida, de comensalidade, de aliança com o sagrado, os sacrifícios de animais têm funcionalidade, cumprem obrigações; preservam cardápios, datas festivas, iniciações religiosas, ritos de passagem; e mantêm unidade e identidade das tradições e dos sistemas alimentares.

Aliás, independente do motivo sagrado, sabe-se que o Brasil é um dos maiores mercados de carne do mundo.

Nesses contextos sociais, econômicos e culturais, deve-se olhar para a ampla ação do abate de animais para atender sistemas alimentares dos mercados nacional e internacional, visto que a maioria da população do planeta é onívoro, e as carnes têm destaque na formação de cardápios e nos hábitos alimentares.

No caso brasileiro, verifica-se na estatística de 2015 que houve o abate de 39 milhões de suínos, 5 bilhões de frangos, 30 milhões de bois; e, ainda, segundo o IBGE, em 2015, o Brasil mata um boi, um suíno, e cento e oitenta frangos por segundo.

Certamente a carne que chega do abate cerimonial, com intenções sacrificais, é uma carne autorizada que segue os ritos que buscam tocar no sagrado.  Por exemplo, os frangos sacrificados pela indústria da carne no Brasil, para o mercado muçulmano, seguem as regras do Alcorão, e assim a sua carne que chega do abate ritual estará boa para o consumo.

Nas religiões de matriz africana e, em destaque, o candomblé, os sacrifícios integram as liturgias, e são realizados com rituais específicos relacionados à vida sagrada do terreiro. O sentimento de sagrado orienta cada cerimônia através de canto, música instrumental, dança, e o uso de variados objetos de função litúrgica para o sacrifício de cada animal.

Essas religiões milenares de matriz africana têm sofisticados processos sociais e rituais aonde os animais não são maltratados, e são imolados de maneira funcional, com faca, e nele se separa o sangue para os deuses e as carnes para os homens.

Todavia, embora as matanças de animais com prescrições religiosas sejam em maior número feitas pela indústria das carnes no Brasil, há uma verdadeira ação de intolerância religiosa com as matanças artesanais realizadas nos terreiros de candomblé.

Essa crescente intolerância religiosa quer criminalizar os sacrifícios de animais dos muitos terreiros de candomblé, que querem exercer seus direitos de liberdade e opção religiosa da mesma forma que são asseguradas aos judeus, aos muçulmanos, aos cristãos, e as seitas pentecostais, entre outras.

 

Raul Lody

Comer com o sagrado

A relação entre a comida e o sagrado é fundamental, e ela dá aos ingredientes e aos processos culinários um verdadeiro diálogo simbólico, funcional, porque a comida tem a virtude de possibilitar encontros, e destacar pessoas, devoções, e as diferentes maneiras de ritualizar a natureza e a cultura.  A comida traz momentos de pertencimento e de alteridade.

A Bahia é um lugar privilegiado para estes encontros, pois há muitas festas de Largo, nos terreiros de candomblé, e nas casas. Nestes espaços sociais, a comida estará sempre marcando o seu território onde cardápios vão individualizar cada celebração. A comida é emblemática na fé e nas maneiras peculiares que cada um tem para se distinguir.

Os cenários das expressões coletivas trazem o sagrado interpretado em variados rituais da alimentação. E agora em janeiro, vivem-se as festas de Reis, que mostram a visita dos três Reis Magos ao local do nascimento do Menino Deus, e essa visita é lembrada e celebrada com festas populares, onde há manifestações como música, dança; e certamente muita comida e bebida.

foto de Jorge Sabino

foto de Jorge Sabino

Rabanadas ou fatias de parida e vinho tinto fazem a base das comidas que dão continuidade às devoções que fazem parte do amplo ciclo natalino que vai até 06 de janeiro, dia de Reis.

As manifestações populares são muitas, e mostram nos ternos de Reis os desfiles, e as outras formas de rememorar nas cidades, nas igrejas e nas casas a visita dos Reis magos ao Menino Deus, pois a fé é uma expressão pessoal, íntima, cultural e simbólica.

E o tempo especial da festa mostra como a comida é importante para reunir, louvar, sacralizar a natureza, manifestar tradição, reativar memórias ancestrais, valorizar os ingredientes da região e as comidas da própria festa.

Há um forte sentido autoral nas maneiras de se comunicar com o sagrado, seja no oferecimento do caruru para São Cosme e São Damião; na pipoca para São Lázaro, que é também Omolu; na pamonha e bolos de milho para lembrar São João; oferecer o mugunzá e o licor de jenipapo nas trezenas de Santo Antônio; nos acarajés das festas de Santa Bárbara, que é também Iansã; nas frutas com muita água que são relacionadas com as santas Nossa Senhora da Conceição e Santa Luzia. E na Semana Santa, há verdadeiros banquetes de “comidas de azeite”, onde vatapá, moquecas e frigideiras são oferecidos. E assim, sem dúvida, o melhor da fé passa pela boca, porque nada é mais sagrado do que a comida.

Entretanto essas e outras tantas festas, que patrimonialmente atestam as nossas identidades culturais, e livremente mostram como se expressa de fé criativa e tradicional, vivem um sério risco em virtude das muitas e diferentes ações de intolerância religiosa que o Brasil vive nestes últimos anos. O sagrado, e tudo que expressa devoção, vem sendo alvo de um perverso processo de discriminação e de “demonização” pela fé alheia.

Com isto não só as festas, mas também um amplo acervo de expressões e de linguagens que integram o nosso patrimônio cultural correm sério risco; e por isso é urgente valorizar as expressões populares, a arte popular, as festas, as diferentes formas de manifestar religiosidade, as comidas e seus rituais de comensalidade.

Todos têm o direito de optar por um modelo religioso, de ter hábitos alimentares diferentes, ou de participar de festas, de teatro tradicional, de danças, entre tantas outras formas de assumir os diferentes papéis sociais deste Brasil tão multiétnico e multicultural.

Comer não é apenas um ato nutricional, comer é um momento de recuperar memórias, de trazer referências, de marcar lugares de diferença, de garantir direitos sociais e culturais.   E o motivo que leva a sacralização das coisas está integrado à vida, e, desse modo, ao trabalho, aos ciclos festivos, à cada tema interpretado, onde mitos, santos, deuses, orixás, todos convivem dentro das relações sociais, das histórias, dos desejos de cada indivíduo de celebrar ludicamente com festa a comida e a sua comensalidade.

Raul Lody
02 de janeiro de 2017

 

(originalmente publicado no Jornal A Tarde – Bahia)

Maduras, cheirosas e sagradas. As frutas de devoção

O verão e o início de dezembro, juntos, trazem o começo de um amplo ciclo de celebrações tradicionais que o povo do São Salvador, Bahia, conhece por Festas de Largo. Estas celebrações acontecem próximas às igrejas dos santos que são homenageados, e unem fé e festa, festa de comer, de viver a celebração da comensalidade. Também há samba e capoeira; procissões e missas solenes; devoções do povo de santo dos terreiros de candomblé que fazem da festa um momento sagrado.

É um rico calendário para celebrar: 04 de dezembro com Santa Bárbara; 08 de dezembro com a Conceição ou a Conceição da Praia; 13 de dezembro com Santa Luzia; 01 de janeiro com Bom Jesus do Navegantes, e depois a Lavagem do Bonfim; 02 de fevereiro Nossa Senhora das Candeias, com a festa de Iemanjá.

Todas essas festas são conhecidas não só pelas comidas, mas também pelas frutas da época: manga, abacaxi, laranja, melão, melancia, caju, mangaba; entre tantas que recuperam os bons hábitos de comer muita fruta, que seja doce e tenha muita água para equilibrar com o calor do verão.

Foto de Jorge Sabino

Foto de Jorge Sabino

As primeiras festas de rua, de Largo, trazem para o calendário tradicional da cidade as Santas, que no olhar e sentimento afro-baiano são também orixás – Iansã, Iemanjá e Oxum –; todas muito populares e presentes na vida e nos costumes das Bahia.  Os orixás estão integrados ao cotidiano e marcam as festas públicas para celebrar fertilidade; águas de mar e de rios; maternidade; e estes temas unem-se ao imaginário de fartura das comidas.

Assim, as Festas de Largo reúnem muitas baianas de tabuleiro com: acarajés, abarás, “passarinha”, cocadas; e, há as barracas especiais de comidas com: feijoada, caruru, vatapá; efó, xinxim de galinha; moquecas de peixe, de camarão, de carne, de bofe; maniçoba; entre tantas opções de se comer à baiana; e também as barracas para se beber à baiana.

Sem dúvida, os ingredientes têm muitas histórias e significados, e as frutas de verão são reconhecidas pela beleza, cor, perfume e sabor; além da sua boa quantidade de água. São frutas maduras que saciam a sede.

Frutas prontas para serem consumidas são oferecidas a um ser sagrado antes de serem comidas pelos homens. E assim a primeira raiz, a primeira folha, a primeira verdura, a primeira fruta, são oferecidas como um agradecimento pela colheita, ou como um oferecimento, além de representar um pedido de permissão para o seu consumo.

Dessa maneira, nas tradições afro-baianas, os orixás comerão primeiro as frutas que foram selecionadas por serem as mais bonitas, e por estarem maduras; com isso são certamente as mais deliciosas. As frutas são oferecidas, em pratos e travessas, nos altares dos orixás quando se agradece a colheita, e então é pedida a permissão para consumi-las livremente, na quantidade desejada.

Esses rituais imemoriais, onde se alimenta primeiro o sagrado e depois se alimenta o homem, ocorre em todos os povos, em todas as civilizações, que buscam uma comunhão entre a natureza e o sagrado.

As primeiras uvas, as mais tenras, eram oferecidas a Baco ou a Dionísio, para agradecer uma boa colheita, e também para proporcionar uma boa produção de vinho; porque o alimento abençoado é perfeito em qualidade, e terá o sabor desejado; e o seu consumo trará alegria.

Cada fruta, verdura, ou raiz, oferecida, tem um sentido sacrificial, de comunicação ritual, que é feita com gestos especiais, cânticos, posturas corporais, que darão identidade e entendimento de cada cerimônia. Nas tradições afro-baianas, as frutas de verão são oferecidas às Santas por terem beleza, doçura e quantidade de água que possuem, para que só depois de abençoadas sejam consumidas.  Certamente as frutas mais amarelas, bem maduras, quase douradas, são da predileção de Oxum, e isso revela o sentido da fertilidade, da maternidade e das águas doces.

Raul   Lody

 

(artigo originalmente produzido pelo Jornal A Tarde)

Comida “típica”: uma interpretação ideológica

O que se entende por típico é uma exposição e uma construção de um retrato de bases políticas e culturais para significar um grupo ou comunidade de determinada região.

No século XX, há um amplo movimento no mundo que busca a afirmação das identidades regionais. Isso se dá durante um contexto social de reunificação e valorização das formas culturais identitárias dentro de territórios que foram fragmentados após a 2ª Grande Guerra Mundial. Vive-se, neste contexto, uma mobilização no mundo para retomar símbolos de auto representação; e assim recuperar um ideal de povo e de Nação.

Diferentes acervos foram destacados e reunidos, dentro do que se pode chamar hoje por Patrimônio Imaterial. Estes acervos representavam as estruturas de determinadas sociedades, e seus processos sociais, dentro das mais fundantes referências culturais e de alteridade.

Dessa maneira, manifestações como: música, dança, comida, festas, religiosidade; mitologias, técnicas artesanais, indumentárias e tradições orais; que eram, e ainda são, capazes de indicar e localizar um lugar, uma região, um povo, uma civilização, foram usados para manter o sentimento de pertença.

Agora, no século XXI, há novamente um movimento de valorização, e revalorização, de alteridade de grupos, que orientam as ações de salvaguarda patrimonial, num cenário de crescente globalização.

Reunir, reorganizar, territorializar tradições e expressões culturais ancestrais são maneiras de selecionar e justificar uma identidade para o que é típico, como muitas vezes idealizar a construção do que é típico.

foto de Jorge Sabino

foto de Jorge Sabino

Estes temas são verdadeiras representações episódicas de diferentes momentos históricos, econômicos e sociais, onde se pode incluir o mercado, o consumo, o turismo, o civismo; e demais aspectos que possam atender ao ideal de singularidade de um grupo de uma região para emblematizar determinada característica.

Está também no típico um imaginário, seja concreto ou abstrato, que chega a partir de bases etnográficas, e das muitas construções sobre o que é nação, povo, tradição e costume.

Da busca da identidade, e do ser diferente, nasce o sentimento do “típico” como uma forma capaz de individualizar e, ao mesmo tempo, de estratificar as maneiras de se interpretar uma região, um segmento étnico, um povo, uma nação. Entretanto, o conceito de típico também é dinâmico, pois é um conceito sócio-político, ambiental, cultural e econômico; e ainda tem relações complexas com o global, ou com o que está fora das suas fronteiras.

Por exemplo, a chamada “comida típica” integra-se como forma de comunicação do que se sacralizou em determinada região para o consumo, e o comércio.   Embora temas contextuais possam socializar essa comida em cenários mais amplos da cultura e do patrimônio. E no Brasil, consolidaram-se um quase determinismo sobre as regiões e suas comidas típicas. Pode-se ver como típico: no Sul o churrasco; na Amazônia o tacacá; no Nordeste a tapioca, o acarajé, a comida de coco; no Sudeste a mitológica feijoada; no Centro-Oeste o caldo de piranha.

Assim, comida típica é um emblema, e um tema clássico, na gastronomia que merece revisão, e um entendimento mais referenciado nos contextos de patrimônio imaterial e salvaguarda de saberes tradicionais.

 

Raul Lody

DIDÙN DENDÊ: um doce de dendê

O dendezeiro e o seu fruto trazem imaginários gastronômicos, religiosos, cosmetológicos que seguem os costumes e as tradições de muitos povos africanos.

Sem dúvida, no Brasil, o imaginário do dendê está no vatapá, no acarajé, e em muitos outros saborosos quitutes da mesa baiana com base na matriz africana; digo aquele feito da flor, o seu mais suculento azeite.

Os produtos que chegam do dendezeiro marcam um rico e dinâmico imaginário sobe a África na Bahia, e em todo o processo da diáspora. O dendezeiro é uma palmeira que chegou do outro lado do oceano dos tubarões, o Oceano Atlântico. Ele é nativo de uma vasta área do continente africano que vai do Senegal até Angola, e segue também da costa ocidental até a costa centro-atlântica ou África austral.

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foto de Jorge Sabino

O dendezeiro é uma palmeira fundamental para um grande território do continente africano. Ele é considerado uma árvore sagrada, o igi opé para os iorubas, e representa Ogum, orixá essencialmente civilizador e transformador das tecnologias e dos implementos para a agricultura, para a caça e para a defesa.

Do dendezeiro tudo é aproveitado, seja para construção de casas, objetos variados, instrumentos musicais e, em especial, o seu fruto para ser transformado em azeite, e da seiva do dendezeiro se faz um tipo de bebida chamada de emu – vinho de dendê.

Há relatos da venda de rua na cidade do São Salvador do vinho de dendê, uma bebida fermentada.  Que faz parte de um conjunto de bebidas artesanais e comuns nos cardápios tradicionais das populações de matriz africana, tais como o aluá e o afurá.

O sabor, a cor, o perfume, a estética, marcam os muitos e diversos usos do azeite de dendê nas receitas salgadas da culinária de matriz africana que fazem parte da construção da identidade alimentar da mesa afro-baiana.

Nesse longo processo do tráfico de africanos em condição escrava, o dendê chegou ao Brasil; e do Brasil foi levada a mandioca, a cachaça, a rapadura e o fumo-de-rolo para a África.

A nossa mandioca, nativa da América, passa então a criar um rico cardápio de pratos, entre eles o infunji, um pirão de mandioca que é um prato nacional de Angola.

O dendê não está apenas no Recôncavo da Bahia, onde se situa a cidade do São Salvador, está também na região amazônica, onde se encontra uma rica culinária de dendê, também em receitas de vatapá e caruru, como as que são feitas no Pará. E no Maranhão, as comidas sagradas na Casa das Minas e na Casa de Nagô revelam receitas feitas com o azeite de dendê, inclusive acarajés.

O dendê marca muitas receitas que estão nas casas, nos restaurantes, nas feiras, nos mercados onde se encontram as moquecas, o efó, o abará, o feijão-de-azeite, o caruru. Também nas cozinhas dos candomblés com amplos cardápios de uso e significado religiosos e social.

Entretanto, nesse diverso acervo culinário africano também há um doce, um doce que é feito de dendê. Dendê doce? Sim. É uma receita angolana chamada de dendéns em calda que é feito com os frutos do dendezeiro, coco, açúcar, erva-doce e casca de limão.

Destaco também que no tradicional Caruru de Cosme, festa anual que se comemora os santos gêmeos Cosme e Damião, que está associado à mitologia dos ibejis dos iorubas, temos a banana-da-terra frita no azeite de dendê e pulverizada com açúcar e canela.

Há um sentimento dominante que relaciona o dendê com a matriz africana, numa maneira patrimonial de ver e de representar o mundo.

 

Raul Lody

 

(originalmente publicado no Jornal A Tarde, Bahia)

Doce que te quero doce

Comemoração dos 90 anos do Manifesto Regionalista.

É preciso destinar um tempo especial para fazer um doce, ou comê-lo, é um tempo de devotamento.  Um tempo que vai muito além do relógio. São processos sutis, secretos e autorais. Há uma imersão na receita, onde existe um tempo próprio deste ritual do fazer, do experimentar e, principalmente, do inventar. Há um valor agregado ao que é doce, e fazer um doce é uma especialidade, uma vocação. Mesmo nas receitas mais “rápidas” dos doces do cotidiano, há uma busca de particularizar cada receita; de criar uma tradição, uma identidade, seja pelo ingrediente, a forma de preparo, ou maneira de apresentação do doce.

foto de Jorge Sabino, de pintura de Josefa de Óbidos, século 17

foto de Jorge Sabino, de pintura de Josefa de Óbidos, século 17

A base sacralizada para o doce na nossa culinária é o açúcar da cana sacarina, que não é apenas um ingrediente, mas também uma compreensão ampliada de mundo que se agrega aos sabores do Oriente para ganhar um sentido patrimonial, como é o caso da doçaria do Nordeste. O açúcar da cana sacarina aponta para cenários regionais de criações de papéis e lugares sociais que foram convencionalmente destinados à mulher, sendo a cozinha um lugar do poder feminino. Há uma espécie de destinação histórica, de caráter patriarcal, evidentemente, para que a mulher faça o doce.

Mesmo num doce muito simples há sempre a necessidade de técnica e experiência, pois um bom doce requer que todos os sentidos humanos estejam muito acurados. Cor, cheiro, textura, sons; e, claro, as provas, o gosto, são fundamentais ao ritual quase sagrado perante o açúcar.

Gilberto Freyre traz na sua obra “Casa Grande & Senzala” cenas do cotidiano, cenas das casas urbanas e, em especial, dos engenhos de açúcar de Pernambuco; onde aponta para uma linhagem de mulheres que estavam dedicadas às cozinhas, enquanto lugares especiais para se fazer o doce.

As mulheres lusitanas, externamente mulheres brancas, mas por serem marcadas pela longa civilização magrebe, Norte da África, trazem e revivem no Brasil receitas, combinações, que são marcadas por essa africanização quando unem a canela com o açúcar.  Já o trabalho de comida feita em grande quantidade como, por exemplo, porco, cabrito, galinha; ficava a cargo das mulheres africanas em condição escrava, ou afrodescendentes.

À época, fazer o doce era semelhante a fazer a renda ou o bordado. E havia uma busca pela receita excepcional, pela maior e melhor elaboração, e por isso se tornava secreta, havendo uma verdadeira confraria deste ofício. A confraria do doce, que no caso brasileiro era tradicionalmente exercida pelas mulheres.

Buscavam-se, além de tentar repetir a doçaria moçárabe, de base Ibérica e Moura, outros processos culinários que também se recolhiam dos mosteiros medievais, no reconhecido saber das monjas.  Eram doces, geralmente, com muitas gemas de ovos, canela e açúcar, base da maioria dos sabores doces, de elaboração secreta, dessas cozinhas santificadas.

Assim, as mulheres, além do poder formal exercido na casa, também se dedicavam a interpretar as frutas locais, e outras que fossem já do conhecimento lusitano, ou orientais que foram abrasileiradas e ganharam assim um sentido vernacular, como, por exemplo, a jaca.

Tanto quanto um brasão, uma marca heráldica com a torre de um castelo e dois leões, ou uma armadura guarnecida pela flor de Lis, era o significado do doce; e destaque para os bolos criados nos engenhos de açúcar de Pernambuco, verdadeiras assinaturas culinárias que expressavam um sentimento de pertença, de identidade cultural ou de uma família: “Bolo Souza Leão, Bolo Cavalcanti, Bolo Souza Leão à moda de Noruega, Bolo Souza Leão Pontual”. (Gilberto Freyre, Açúcar, 1939)

Gilberto reafirma, ainda em seu livro Açúcar, o desejo e o sentimento de dar ao doce um valor social, econômico, quase de nobreza. E, volta-se a questão autoral, é por isso se agrega às receitas os nomes das suas criadoras, ou dos locais em que foram criados.

O doce brasileiro, nesse universo da cana sacarina do Nordeste, tem um nascedouro muito anterior ao tempo formal do chamado “descobrimento”, ou mesmo das ações econômicas do ciclo das Grandes Navegações.

Desde muito antes, o doce está entre os arcos Góticos ou arcos Românicos das amplas cozinhas, quero dizer das cozinhas-catedrais para o ofício de fé da preparação do doce. Assim, o doce é identificado nas suas lembranças ancestrais, nas suas referências formadas pela cultura.

O espírito é alimentado por incensos, velas e orações, enquanto o corpo dedica-se à comida, à descoberta de novos sabores, principalmente, criando-os, ou, ainda, adaptando-os no que é possível. E aí está o doce para exercer o seu papel de tornar o espírito mais leve.

E, sem dúvida, é a partir desta verdadeira civilização do “doce”, que Gilberto Freyre, em um dos seus momentos mais significativos, elabora a construção do seu Manifesto Regionalista de 1926.

 

 

Raul Lody

Recife, 28 de outubro de 2016.

 

 

 

 

Comida é reinvenção. Porque reaproveitar é preciso

Cada vez mais são valorizados os produtos regionais, as receitas, e as maneiras de trazer à mesa os preparos culinários que são orientados por um aproveitamento mais racional dos ingredientes.

O uso de cada ingrediente na sua totalidade mostra a experiência de quem sabe o que é “o fazer a cozinha do cotidiano” nas suas dimensões funcionais, sociais e econômicas.
Cozinhar segundo as oportunidades de poder usar determinados ingredientes, ou adaptar as receitas a outros ingredientes, são maneiras de representar cada história familiar nos cenários da casa, da cultura e das histórias de cada comunidade.

Entretanto é nos cenários das casas onde se destacam os cadernos de receitas, que além de informar sobre como fazer os diferentes preparos indicam também sobre as melhores formas de aproveitamento dos ingredientes. Os cadernos de receitas trazem ainda a indicação dos produtos sazonais, “da época”, para os cardápios das estações. São receitas de cozinhas memoriais que ao mesmo tempo são dinâmicas.

foto de Jorge Sabino

foto de Jorge Sabino

Há atualmente uma necessidade crescente de recuperar receitas que têm no reaproveitamento dos ingredientes uma orientação para criação de pratos que são verdadeiras reciclagens.

Isso mostra como manter a qualidade da comida sem desperdiça-la; pois cada dia há mais necessidade de alimentar, de nutrir, de saciar a fome.
Para reaproveitar é preciso ter acumulado a experiência da sabedoria tradicional para entender o valor da comida tanto em sabor quanto em símbolo. Estas reciclagens de alimentos buscam além do uso total, e possível, de cada ingrediente, in natura ou processado, preservar a identidade e o sabor de cada preparo, pois comer não é apenas a ingestão da comida.

Na mesa baiana, por exemplo, há o pão reinventado na forma de vatapá. E, algumas receitas já consagradas estão incluídas como opções de cardápios de restaurantes, embora suas bases tenham surgido nos reaproveitamentos criativos das cozinhas nas casas. Refiro-me ao prato chamado de “roupa-velha”, receita que nasce da reciclagem da carne de boi cozida no feijão, ou de outro preparo, que no dia seguinte transforma-se nesta nova receita que recebe o acréscimo de outros ingredientes.

A carne é desfiada e acrescentada a um refogado feito com cebola, camarões defumados e azeite de dendê; ainda a carne desfiada pode também ser refogada com óleo e misturada com ovos. As farofas são um bom acréscimo para dar volume para estes pratos, que quase sempre são consumidos com farinha de mandioca. E, muitas vezes, o arroz branquinho, que foi feito na água e sal, é uma boa harmonização para o roupa-velha; e, com certeza os molhos de pimentas vão valorizar e ampliar o sabor da carne.

Este preparo na Bahia é ainda chamado de “te-conheço”, uma referência a comida que é reconhecida como do dia anterior e que retorna à mesa de forma modificada.
Algumas outras receitas são clássicas dentro dos cardápios dos reaproveitamentos, e há uma espécie de sequência para as reciclagens. Por isso, já se tornam esperadas receitas que vão ter como base caldos, carnes, embutidos, legumes, que fizeram parte de receitas anteriores. Falo dos cozidos, das feijoadas, das bacalhoadas que, em geral, são pratos preparados com grande quantidade de ingredientes.

Um dos casos mais recorrentes são os bolinhos de feijão, de bacalhau; as sopas feitas de feijões, as farofas e os pirões feitos com os caldos; além do quê, os próprios caldos dos cozidos e das feijoadas já são verdadeiras entradas das refeições.

A bacalhoada é também uma candidata para a roupa-velha; outra opção famosa é a fritada enquanto reaproveitamento de ingredientes, onde o ovo e a farinha de rosca se unem para formar esta receita.

Isso mostra que a reciclagem é também uma opção enquanto prato principal, e que se come com prazer.

A invenção de cada autor culinário quer encontrar na possibilidade dos recursos que ele tem na sua cozinha as diferentes formas de utilizar ao máximo determinado ingrediente para preparar e marcar uma espécie de assinatura culinária nas usas receitas.

Sem dúvida, a história da comida sempre aponta para uma cozinha que simboliza um lugar social e cultural, e que mostra o “quê” é possível ser comido e como deve ser comido.

A comida, então, representa uma referência da casa, da família, da região, da matriz étnica; de uma civilização. E assim, a cozinha baiana, é um caso exemplar dos reaproveitamentos, das reinvenções dos pratos e dos cardápios, sempre referenciados por uma forte presença cultural e histórica.

Raul Lody

 

(originalmente publicado no Jornal A Tarde)